terça-feira, 26 de maio de 2015

O esquecido - Conto VII




   Eram tristes lembranças de um passado recente, coisas desventurosas que eu não fazia mais questão de lembrar. E nessa necessidade de esquecer o que me fazia infeliz, acabei também esquecendo a graça. Foi mais ou menos assim que aconteceu, quer dizer, foi mais ou menos assim que eu lembro do que me aconteceu...

   Pascoal era um sujeito bem apessoado, dono de um comércio pertinho aqui de casa, homem bom, de bons costumes. Seu estabelecimento vendia coisas simples que pessoas das mais diversificadas idades poderiam querer. E eu queria uma coisa, uma pomada. Levantei-me triste e dolorido, tentando não recordar de mais nada que me fizesse sofrer e fui para a venda do Pascoal. 

   "Tarde, Pascoal! Como vai, amigo?" - cumprimentei com toda educação que me restava, deixando a dor nas nádegas se perderem nos espasmos. 

   "E o que é que tem de bom para se contar ou sentir, Justino?!" - respondeu-me amargamente, meu vizinho e também amigo de bairro, Pascoal. 

   Estranhei seu descaso e como me tratou, sendo que nunca havia acontecido coisa similar na vida, e fui direto ao ponto, já que era só isso que me restava fazer:

   "Veja logo uma pomada para assaduras aí, estou com pressa."

   "Tome! São dez contos!"

   "E desde quando uma pomada custou tanto?"

   "A farmácia do Agenilson fica mais três quarteirões saindo daqui e virando à esquerda!"

   "Ô, diabos, homem, o que foi que te mordeu?"

   "Vai levar a pomada ou não?"

   "Vixe! Semana passada não era nem cinco contos, viu?!"

   "Mas aumentou nessa segunda! Quer ou não quê, homem?"

   "Quero pelo preço justo!"

   "Justo é o preço que se paga! São dez contos!"

   "Demônio de homem ruim! Não sei o que te deu, peste, mas passa essa merda de pomada pra cá. Tome seu dinheiro, sovina!!!"

   "Tome seu troco, homem! Pra quê sair correndo e dolorido, pegue aqui! Tome!"

   "Quê isso?"

   "Seu troco!"

   "Aqui tem cinco conto!"

   "Tem!"

   "Lazarento, você não disse que a porcaria da pomada custava dez contos?"

   "Calma lá, compadre Justino! A pomada custava quase cinco, segunda teve aumento, agora é cinco!"

   "Você tá querendo me endoidar, diacho?! Pois foi agorinha mesmo que você me disse que a pomada custava dez e que se eu não quisesse era pra ir pagar lá na farmácia do Agenilson!"

   "Está faltando cinco contos!"

   "Quê????"

   "Do dinheiro da pomada, homem! Você só me deu cinco!"

   "TÁ MALUCO, PASCOAL??? Você acabou de me dar o troco e... ah!, vá pra merda! Engole essa bosta de pomada e limpe seu rabo com a gorjeta que lhe dei! Safado!"

   Saí enfurecido porta afora e peguei a esquerda. Andei três quarteirões e cheguei na farmácia do Agenilson.

   "Agenilson, tarde! Me vê uma pomada, daquelas pra assadura, por obséquio! - disse seco.

   Nisso uma senhora apareceu do lado e me falou:

   "Justino?! O que está fazendo aqui na farmácia? Você não ia pro jogo homem?"

   "Que jogo, mulher?!" - gritei sem paciência porque aquela era minha esposa.

   "Trapirandas contra Junitubas, homem, o jogo da sua vida! A desforra!"

   "Quem diabos é isso, mulher, tá louca??? Vim comprar pomada para assadura, meu saco tá coçando e não estou aguentando mais me sentar. Eu já te disse isso antes de sair de casa, tá variando, tá?!"

   "Ô, Justino, homem de Deus, você é que tá biruta das cachola, essa assadura aí é da semana passada, lembra não?!"

   "Hein?! Como assim, tá querendo me irritar mais ainda, mulher?!"

   "Home, você não se alembra do jogo da semana passada, que você e o Pascoal ficaram vendo lá na sala até a última cobrança de pênalti depois da prorrogação? Passou horas sentando, bebendo e fumando, e gritando e reclamando... Lembra não?

   "Lembro não!"

   "Você ficou a noite inteirinha brigando com o Pascoal porque ele aceitou a derrota do Trapirandas no último pênalti que o juiz roubou... Lembra não?"

   "Lembro não!"

   "Você brigou com seu amigo por causa de bola, home, coisa que não se faz. Ficou o dia seguinte todo com a bunda assada de passar o jogo todo arredando as cadêra pra frente e arredando as cadêra pra trás... Lembra não?"

   "Lembro n... ah, mulher, pare de inventar modice! Tu é que tá variando, besta!!!"

   "Vem, home, vou te levar pra casa. Tu não tá muito bem não! Vem comigo, vem?!" - ela me deu a mão e eu segurei na mão da patroa, confuso, mas segui a megera de volta pra casa. 

   "Home do céu, tu não tá bom das cachola mesmo não. Queria que queria ver o jogo de hoje, lembra não?"

   "Lembro não, muié!"

   "Tinha até comprado o ingresso pra assistir no campo, home! Lem..."

   "Lembro não, muié, para de falar tontice! Diacho!"

   "Tadinho, doidô de vez!"

   Caminhamos os três quarteirões até chegarmos perto de casa e a patroa falou:

   "Só vamos passar lá no Justino rapidinho, tenho que comprar a sua pomada de assaduras que ainda tá cedinho e toda segunda tem aumento!"

   "QUE???"

   "Sua pomada, Pascoal, tá variando, home?"

   "Que pomada, muié?! Quê Pascoal?!"

   "Do jogo de ontem que você ficou assistindo com o Justino e se assou todo no traseiro! Lembra não, Pascoal?!"

    "Que Pascoal o quê, tá maluca?!"

    "Pascoal, pare de doidice, home, bôra pra casa, anda!"

    "Meu nome é Justino! Doida!"

    "Ixi, home, melhor te levar pro doutor, to vendo que hoje tu já até esqueceu a tua graça!"

 

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