terça-feira, 28 de abril de 2015

A indubitável, mas questionável, história de All, o Orate.



Já me chamaram de louco, de insensato, de maluco, de mentecapto, e de tantos outros nomes que sequer conseguiria listá-los. Dizem isso de mim porque nunca conheceram All, o Orate. Mas eu o conheci e, pacientemente, escutei toda sua história... quando ele a contava já pela sétima vez. Foi assim:


Fugia eu, de um lado para o outro, entre as vielas e becos, cortando a multidão ao meio, desesperado, preocupado com o bem estar da minha vida. Logo atrás de mim vinham os guardas pessoais de Lord S., ansiosos por talhar-me a carne e levar-me embora os bagos. Vejam bem, devo acrescentar um detalhe, eu não havia feito nada, tinha plena convicção de que era inocente, mas não era o que o Senhor S. pensava de mim. Seus abrutalhados soldados - homens sanguinários que não doavam virgens inocentes aos dragões sem antes tirar-lhes a pureza - caçavam-me entre os transeuntes, como se caçava um ordinário Val enrugado de pele amarela. 

Ia eu correndo, meio que agachado para ocultar a minha cabeçorra desproporcional em meio a tantas outras cabeças, quando tropecei em pernas alheias e fui parar de cara no chão. Agilmente, enrolei-me numa manta fedorenta que estava ali por perto e pus-me a mendigar, como faziam os outros débeis homens, sentados naquele chão imundo, naquela praça sofrida. Um dos pedintes, provavelmente o dono da nada cheirosa manta, puxou-me o pano, quase revelando meus traços aos meus algozes a dois passos de mim. Dei-lhe um safanão e tornei a cobrir meu rosto. Sacudi-me de um lado para o outro - como aqueles à minha volta - recitando seus cânticos e lamuriando como faziam para pedir esmolas. 

Dois brutamontes do Venerável S. passaram à minha esquerda e outros dois à minha direita. Fiquei freneticamente absorto naquele balançar, na minha melhor performance de pedinte já feita até hoje. Os homens passaram sem me notar. Quando já estavam bem distantes, no fim daquela praça, levantei-me ainda de posse do manto emprestado à força e fui para o outro lado. Mas existiam muitos deles espalhados por toda a localidade e corri para um amontoado de pessoas ali perto. Misturei-me e aguardei. Olhei vez ou outra para todos os lados e identifiquei vários dos homens do Respeitável S. perambulando por todos os cantos. Fiquei quieto, temeroso por minha pele que seria maculada por lâminas não muito amoladas. 

Para minha tristeza, aqueles esfoladores não desistiriam tão facilmente de infligir-me a dor, então sentei-me em meio aos ouvintes daquele grupo. Como uma mão suave que acaricia, a voz daquele narrador tomou para si a minha audição e foi assim que eu conheci All. Um sujeito mais insano do que eu, contador de histórias duvidosamente verídicas. O rei sem reino, o Orate. Quando o escutei pela primeira vez, dizia:

"... a horda estava próxima, ouvíamos o ruidoso marchar. Pareciam trovões ecoando pela noite, cadenciados e mortais. Seríamos dizimados, pulverizados por seus dentes e lanças. Naqueles tempos, aquelas criaturas devastaram toda a população, não sobrou uma viva alma para contar história e..."

Um homem mais bem apessoado em meio a tantos desafortunados perguntou interrompendo:

"Como, se você está aqui narrando a história?"

Alguns riram e outros fizeram sinal de silêncio. All parecia ter uma legião de fãs e aos poucos eu entenderia por quê. 

"Se não interrompesse a história saberia, homem. Já levou o charco para a esposa? Se não purificá-la direito dessa vez, Sunna irá trocá-lo pelo irmão do ferreiro... se é que já não está fazendo isso nesse momento!"

Aquele aglomerado riu em uníssono, alguns até apontando para o desmoralizado corno que saiu indignado. Passou a passos rápidos por mim e não notou a bolsa de moedas que tomei-lhe habilmente. Continuei calado, infiltrado entre os fieis ouvintes de All.

" Não, amigos, não zombem. A verdade é muitas vezes deturpada, são somente sonhos fúlgidos, ignorados por nós mortais... mas, continuemos.

A horda já havia devastado tudo até ali, onde eu habitava em minha infância. Nossa vila era a primeira de nosso reino e estava na extremidade sul das muralhas do castelo. A estrada dos reinos do Norte desembocava bem na entrada de nossas residências. Não nos deixaram entrar pelos portões para abrigarmo-nos atrás das defesas, o rei havia ordenado. Estávamos perdidos. O som aumentava, a morte estava próxima. A horda marchou do Norte até nossas terras e seríamos os próximos. Ouvi pela primeira vez na vida o rugir de um Ror, um som de estripar os ouvidos. Eu e os outros garotos do meu grupo trememos involuntariamente. Todos aqui sabem o que um Ror é capaz de fazer."

Nisso um dos meus algozes apareceu de repente e se intrometeu.

"Velho estúpido. Somente a corja para dar-lhe ouvidos." - gritou para fazer-se ouvir.

O alvoroço começou. Muitos gritaram para o estuprador de virgens ir-se embora, outros somente reclamaram da palavra 'corja', pois não cabia-lhes o epíteto. Eu continuei disfarçado e aproveitei a desavença para surrupiar água quase limpa e um pedaço de cação defumado da barraca do peixeiro ao lado. Certifiquei-me que não seria notado enquanto arrancava nacos em famintas mordidas. 

Terminada a pequena balburdia, All retornou com a história como se nada tivesse acontecido.

"Um Ror é capaz de soltar-lhe o intestino e a bexiga só com seu rugir, imaginem a sua presença!"

"O senhor viu um, mestre All?" - perguntou um crente.

"Não, Bondodir! Não somente vi um, como fui o primeiro de minhas terras a eliminar um deles!"

Muitos suspiraram um "ooooh", alguns poucos apenas estalaram suas línguas em discórdia silenciosa. Eu bebi a minha água impura para empurrar um pedaço de cação goela abaixo. 

"E não usei nada além de minhas mãos e minha sagacidade." - outros suspiros - "Mas isso é uma história adiantada. Primeiro tenho que contar como aconteceu a destruição de meu povo e como eu consegui sobreviver para contar isso para vocês. 

... era madrugada, o som do marchar da horda retumbava no peito, tão alto era. Um Ror rugiu ainda mais perto, um som estridentemente grave e arranhado ao mesmo tempo. Dois de meus colegas ajoelharam-se implorando piedade ao deus Yia. Outros agacharam. O pequeno porão que estávamos escondidos foi tomado pelo acre cheiro de bosta. Estávamos apavorados. Chorávamos. Quando o rugido do Ror soou novamente a horda atacou e, ao mesmo tempo, toda chama que iluminava a nossa vila foi apagada misticamente. Foi quando os gritos começaram e, até hoje não sei dizer o que é pior, o rugido de um Ror ou os gritos de morte provocados por eles."

Peguei-me ouvindo com tanta atenção que nem havia terminado de engolir um outro pedaço mastigado dentro da boca. Engoli com dificuldade e fiquei ali por horas, dias e meses ouvindo aquela história. Pensam que não quis ir embora? A princípio sim, mas depois, nem mesmo quando me encontraram eu parti. Por isso ainda sei contar grande parte da história do nosso destemido ex-rei All, o Orate.


4 comentários:

  1. Mais um vício para as madrugadas!!!
    Forte Abraço Pedro o Escritor!

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    1. Mais uma vez o meu muito obrigado, Dami! Você é o cara! :)

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  2. Respostas
    1. Como assim triste? rs É uma grande aventura, logo postarei a continuação!

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