segunda-feira, 23 de março de 2015

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Eis aqui o marco inicial de minha história. Por que eu escolhi este dia?, essa parte do meu relato?, realmente não sei explicar. Apenas escutem-me, pois o que vou contar chegou a surpreender-me... surpreender, não, chegou a chocar-me, na verdade, fiquei estarrecido com a descoberta. Mas não quero adiantar-me demais, melhor eu começar com fatos.


     - 1. Eu gosto de passar as noites lendo, sentado na última mesa, no canto mais esquecido desse bar/restaurante/lanchonete vinte e quatro horas.

       - 2. As pessoas ignoram-me e eu faço o mesmo por elas. Não sou sociável e minha companhia está nos livros que me seguem todas as noites. Gosto mesmo é de um bom café e do meu prato predileto daquele lugar.

       - 3. Não costumo conversar com ninguém enquanto leio e raramente olho para além das páginas diante de meus olhos.


Fatos extraordinários, alguém diria. Não, são somente fatos. Vocês vão me entender.

Alguém já perguntou-me por que eu não lia em casa ou numa biblioteca, ou mesmo um lugar mais sossegado, mas isso também estará em minhas explicações. Só não posso deixar de dividir o que eu sei antes que eu não volte mais aqui para contar.

Aquele beberrão, a velha chata, a mulher atraente e insuportável e ele, são o motivo de eu preferir vir ler aqui. Logo retomarei as histórias dessas pessoas. Agora elas são irrelevantes.

A comida aqui é excelente e chegar ao prato ideal foi difícil, mas, depois de muitos anos como cliente, consegui decidir-me por essa refeição que hoje leva o meu nome. Não que os funcionários saibam meu nome, mas eu sei que este prato se chama assim. Mas só degusto este delicioso prato quando o rapaz de barba engraçada está cozinhando, se é a rabugenta peituda ou o sovina do seu marido que estão no comando eu prefiro comer os biscoitinhos que estão no meu bolso - que trago por precaução - e servir-me apenas de café.

Começo um livro novo todos os dias. Inicio a leitura assim que saio de casa, lá pelo fim da tarde. Leio por todo caminho. Venho para a minha mesa e faço os meus pedidos. Fico aqui lendo, regado a café, até terminá-los. Alguns eu finalizo antes do nascer do sol, outros só no fim da tarde. Depende. Só então vou para casa e volto no dia seguinte com outro volume.

No começo estranhavam-me e cochichavam a meu respeito, com o tempo a rotina os acalmou e passei a ser parte do ambiente. Praticamente invisível - como gosto de ser. Ler é melhor do que conversar.
Depois falo mais de mim, agora vamos a mais alguns fatos.


       - 1. Não gosto de doces, ela sabe disso, mas continua oferecendo-me as malditas sobremesas.

       - 2. Não gosto de ser interrompido além do necessário, sou focado no que me agrada e nada mais.

       - 3. Estou sempre de casaco, mesmo no calor, não gosto da cor dos meus braços.


A primeira vez que reparei sua presença foi no fim de um dia longo, quando terminava uma difícil leitura. Apanhei meu chapéu, o volume em questão, e deixei o dinheiro sob o pires. Já era manhã e a luz do sol começava a escorregar para dentro do salão de mesas. O homem mais perto da entrada estava de costas, mas acenou com a mão esquerda quando passei por ele, como se despedisse de mim. Não se incomodou em olhar para mim, apenas acenou.

Alguém vai dizer que ele podia estar chamando um atendente ou cumprimentando alguém, mas eu sei que não era esse o caso. O aceno foi para mim. Tenho certeza. Apresento mais fatos.


       - 1. O piso é branco demais e a luz refletida nele é de doer os olhos.

       - 2. Por mais que alguém ame café é impossível apreciar a mesma xícara por uma madrugada inteira.

       - 3. Um cavalheiro nunca senta-se à mesa sem retirar seu chapéu.



Se ainda não estão convencidos do que eu digo, acompanhem meus pensamentos.

Ninguém gosta de ser cumprimentado por alguém que não conhece. Eu não gosto.

No dia seguinte a este, ele me cumprimentou assim que entrei no estabelecimento. Audácia. Só podia ser alguém querendo me perturbar, mas sou focado, fui para meu canto e continuei com minha leitura até a última página. Só desviei meus olhos das páginas amareladas quando levantei-me para sair.

Peguei meu chapéu e meu livro, pus o dinheiro debaixo do pires e saí sem olhar para trás.

Ao passar pelo sujeito - que ainda estava lá - além do aceno do dia anterior me cumprimentou com um "até logo".

Não gostei nem um pouco, saí indignado, furioso.

Pensei em não voltar mais naquele lugar tamanha a falta de respeito daquele homem. Isso não se faz, não mesmo.

Mas, ao levantar no dia seguinte, revivi os dias de sofrimento para encontrar um lugar tranquilo para ler e deixei de lado a questão. Se ele dirigisse-me a palavra mais uma vez eu o ignoraria com classe.

Caminhei no dia seguinte para meu recanto de entretenimento, confiante de que nada me incomodaria dali por diante. Mas eu estava errado. E vou apresentar mais fatos.

       - 1. Gosto de caminhar à noite, pois menos pessoas significa menos barulho.

       - 2. O fundo do salão daquele bar/restaurante/lanchonete vinte e quatro horas era meu por direito e todos lá sabiam disso. Eu pagava comida por ele.

       - 3. O sujeito estava sentado na minha mesa, de frente para meu assento, esperando para falar comigo no terceiro dia.

Petulante.



continua...               leia a continuação: 1 (Um)


12 comentários:

  1. Adorei a narrativa com fatos numerados!
    Fiquei curiosa pra saber o restante do conto mas antes.... quer metade do meu doce? Acha que vai chover hoje? Por que anda sempre de casaco quando o sol está de matar?
    haushaushuahsuahus
    beijos

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    1. Hehehe, tá todo mundo com essa mania de enumerar fatos! kkk

      Telma, vc é o cara, muito obrigado por tudo que disse e fez pelos meus contos e escritos! Eu, minha Senhora, meus cães e gatos, e meus escritos agradecemos imensamente!!!

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    2. Beijos em você, em sua Senhora e em seus cães e gatos!!!!
      Você merece ser divulgado!
      :)

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    3. Explosão de chantilly!!!!!!!!!!!!!! hehehehehehehe valeu!!! Bjão

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  2. Lendo seu conto me lembrei de um filme argentino chamado - Querida vou comprar cigarros e já volto. Talvez tenha sido a narrativa sarcástica e em off do filme que se assemelha com seu texto.

    Hug

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    1. Marcia, muito obrigado! Confesso que fiquei curioso pra ver, a Esposa já tá aqui dizendo pra baixar que ela quer ver também! :)

      Mas não tenho mais palavras para agradecer ser comparado com um filme argentino! (Eu não tenho absolutamente nada contra a Argentina, e todos sabem que seus filmes são maravilhosos!) Assim que assistirmos, eu volto pra comentar. Obrigado! Abraços

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    2. Pedro vc tem uma esposa inteligente, baixe mesmo, o filme é incrível e estou curiosa pra saber a opinião de ambos sobre a película.

      Hug e estou lendo seu blog aos poucos, acho que o ritmo dele é nesta pegada reflexiva, amoooo.

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    3. Já está devidamente baixado, esperando o final de semana para assistir com a esposa. Só não vou deixar a expectativa muito alta pra não me decepcionar! rs

      Muito obrigado pelas leitura, Marcia! Já estou acompanhando o seu blog também!

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  3. Pedro, gosto pra caramba de um texto bem descritivo!
    E os títulos numéricos são demaaaais!!
    Correndo pro segundo.

    Abraço!!

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    1. Lu Andrade, cara, muito obrigado pelo apoio! Fiquei muito feliz de saber que gostou do meu conto, espero que aprecie as continuações e também os outros textos! Valeu a força e o elogio!!! Abração!

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  4. Pedro!
    O que mais me atraiu e intrigou, devo confessar, é o fato de ninguém ter nome, de designá-los por suas características. Isso dá uma curiosidade, sabia?
    E o personagem que criou é bem esdrúxulo, cheio de manias e hábitos arraigados.
    Claro que vou ler o restante... e parabéns!
    Gostei demais!
    Desejo uma ótima semana e um mês carregadinho de sucesso!
    “Sábio é aquele que conhece os limites da própria ignorância.”(Sócrates)
    Cheirinhos
    Rudy
    http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/

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    1. Rudy, nossa, muito obrigado pelos comentários, obrigado pelos elogios também! Verdade quanto aos nomes, prefiro caracterizá-los por ações e vontades. Deixei o personagem principal com uma certa ambiguidade, você vai ler isso nos demais contos...

      Obrigado mesmo, beijão!!!

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