Triste história, só tenho isso a dizer:
Uma vida
Por mais que fosse incrível para ele estar feliz ali, naquele momento,
entusiasmou-se e se deixou levar pela sensação. Dividia o que tinha com
seu irmão mais novo. Nunca faltara em nada para seu irmão, nem sequer em um
instante. Vendo-o ali deitado como um anjinho o tranquilizava.
Era muito bom ver o garoto, dia após dia, crescendo e crescendo sem
parar. Já estava quase na altura do seu ombro. Mediam sempre. O caçula
sempre pedia: “irmão, vamos medir de novo, você mediu errado da última
vez!” e terminava o pedido em um sorriso que se eternizava por todo
momento.
Ele adorava o irmão como a um filho. Eram carne e unha.
Preferia ficar a sós com o irmão a estar com qualquer outra pessoa. E
nunca deixou de ser assim, desde o dia que haviam perdido seus pais
naquele trágico acidente. Passou a mão pelos cabelos lisos e loiros do
irmão. Sorria ao fazer isso, como adorava aquilo. Daria tudo,
absolutamente tudo, pelo irmão.
Quantas não foram as vezes que passou
fome, só para ver seu irmão bem nutrido. Seu irmão nunca sentira fome na
vida. Jamais deixaria isso acontecer. Preferia matar do que ver o moleque sofrer. E não parecia que ele estivesse sofrendo, ali, naquele instante.
Dormia? Não sabia, sentia-o adormecido. Mesmo com toda aquela gente
fazendo barulho. Segurava a cabeça do irmãozinho apoiada no colo.
Acariciava seus cabelos lisinhos. Amava muito aquele menino. Lembrou
do primeiro dia que ficaram sozinhos em casa, quando seus pais tiveram que sair apressadamente. Passaram aquele primeiro
dia todo abraçados um no outro. Vez ou outra, o menor chorava muito e
ele o agradava como podia. Nunca perdia a paciência com ele. Nunca!
Aqueles eram bons tempos... Um tempo antes de perderem a casa. Antes
de serem levados pelo juizado de menores. Antes de serem levados para o
orfanato, ouvindo todos os dias que seriam separados e adotados por
famílias diferentes. Aquilo não podia acontecer. Ele tinha certeza que
seus pais iriam querer que ele cuidasse do irmão. E assim o fez. No
segundo dia de orfanato, depois de assaltar o depósito e juntar o que
era preciso para ficarem bem, tirou o menino dali e foram para bem
longe. Não tinham mais parentes, não tinham ninguém a quem recorrer.
Agora, as
pessoas à sua volta gritavam e aquilo o incomodava muito. Não percebiam
que o irmãozinho precisava dormir e descansar. Abaixou e beijou a testa
do garoto dizendo baixinho: “tudo vai ficar bem, você sabe disso, eu
estou aqui...”
Nada o deixava mais furioso do que outros se metendo no
jeito que cuidava do irmão. Até alfabetizá-lo ele conseguiu sozinho. No
dia que ele leu o primeiro livrinho sozinho foi uma festa só. Comeram
pizza naquele dia, disso ele não esquecia.
Mesmo que não tivessem uma casa,
mesmo que morassem nas ruas, nunca deixara seu irmão debaixo de céu
aberto em um dia de chuva. Nunca o deixou passar frio nem nenhuma
dificuldade. Uma vez, lembrava bem, enfrentou três garotos maiores do
que ele só por causa do irmão. Apanhou muito, mas expulsou os três de
perto do seu protegido.
Alguém tentou tocar a face de seu irmão.
Expulsou a mão com um tapa e gritou: “ninguém toca nele!”
Ouvia a sirene
cada vez mais forte. Alguém disse ao longe: “o menino parece estar
morto, mas o irmão não deixa ninguém chegar perto”
“Morto? Não! Nunca!”
pensava enquanto abraçava o irmão mais forte do que antes. Rezava sem
saber rezar e implorava que tudo terminasse bem e que, pudessem sair
dali para tomar um sorvete, como faziam na maioria das tardes.
“O que
aconteceu, filho?” – um sujeito de colete brilhante e segurando uma
maleta perguntou.
“Acho que foi atropelado” – disse uma voz ao longe.
“Garoto,
vou fazer tudo por seu irmão... mas precisa se afastar” – disse o homem
da maleta.
“Faça o que for preciso, mas comigo aqui do lado. Se ele
acorda e não me vê por perto, apronta um berreiro...” – disse sorrindo e
abriu espaço para o homem, sem contudo largar a mão do irmão que
representava tudo em sua vida e que, mesmo morto, parecia apenas dormir sossegado.
Publicado originalmente no dia 11 de janeiro de 2011, terça-feira.
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