Eis aqui as três primeira partes que antecedem esse conto: 0 (zero), 1 (um), 2 (dois)!
Naquela madrugada anterior demorei mais para terminar o livro. Saí daquele bar/restaurante/lanchonete vinte e quatro horas já com o sol a pino. Voltei logo para casa, fatigado, mas não consegui adormecer. Passei o dia desperto, imaginando o que viria a acontecer quando voltasse para o meu lugar de leitura. Fatos:
- 1. Meus livros novos estavam acabando, precisava urgentemente passar num sebo.
- 2. Arrumei suas fotos espanando todos os quadros presos na parede. Saudade sem tamanho.
- 3. Em tantos anos, sequer um único dia, eu cheguei a deixar de dormir.
Saí de casa antes da mulher atraente chegar do trabalho. Estranhamente, o beberrão e a velha chata não discutiram, ao menos não enquanto estava em casa. Meus dias começavam a se modificar e isso era um mau sinal.
Cheguei ao bar/restaurante/lanchonete vinte e quatro horas bem antes do meu habitual horário. Fui para o meu lugar, - hesitante em olhar para os lados - sentei-me e logo pedi um café.
- 1. Estava ávido por aquela bebida quente. Prometi a mim mesmo tomar mais xícaras por dia.
- 2. O salão estava vazio, exceto pelos funcionários que conversavam ao fundo e pela garçonete que atendia-me.
- 3. O livro que tinha em mãos era um dos meus três últimos. Tratei de lê-lo.
Estava concentrado em minha leitura e não reparei quando ele chegou. Na verdade, ele já estava sentado em frente a mim quando notei sua presença. Ele pousou uma sacola pesada de papel pardo sobre a mesa e empurrou-a gentilmente em minha direção.
"Para você, meu caro. Sei que os seus estão no fim. Escolhi alguns dos meus preferidos. Você não leu nenhum destes." - disse passivamente sem alterar a face.
Puxei a sacola e percebi que era mais pesada do que parecia. Dentro estavam cerca de vinte pesados e volumosos livros, todos antigos, de boa edição e encadernação. Um presente sem igual.
"Obrigado." - respondi simplesmente.
- 1. Não estava disposto a longas conversas.
- 2. Não queria demonstrar minha curiosidade, como no dia anterior.
- 3. Não existe nada melhor do que livros para se ganhar inesperadamente.
Eu queria, sim, queria muito perguntar o porquê daquele inestimável presente, mas contive minha vontade a muito custo. Peguei minha xícara e tomei um gole cuidadoso do meu café.
"Percebo sua força de vontade, é admirável. Estou mais cordial, não percebeu?! Vamos, pergunte-me o que quiser!"
"Aceita um café?"
Ele riu alto, até demais. Creio que o surpreendi novamente. Não foi intencional. Os funcionários olharam com olhos arregalados para nossa mesa. Fatos:
- 1. Se o notaram, era claro que ele existia.
- 2. Acho que ele não gostava de café.
- 3. Eu continuava duvidando de sua existência.
"Você me diverte!" - proclamou. "Vamos, não tenha receio, pergunte-me qualquer coisa." - insistiu.
"Quando vou morrer?" - não sei ao certo, mas pareceu-me justo perguntar isso.
Ele olhou-me minuciosamente, estudando-me, procurando coisas dentro de mim. Suspirou profundamente e respondeu-me:
"Dentro em breve, meu caro. Não tão cedo, mas não tão tarde. Logo."
Fechei o livro, ainda aberto na página em que eu estava quando ele chegou, pousei-o sobre a mesa e inclinei-me para frente.
"Por que eu?" - perguntei desejoso pela resposta.
"Pelo mesmo motivo que você gostaria de tê-lo de volta; apaziguar a minha solidão."
"Por que não outro ser vivente?" - repliquei.
"Porque você pode ouvir-me sem simplesmente acreditar em tudo que eu digo e porque ter alguém para conversar irá trazer-lhe um último conforto."
"Não quero nenhum conforto." - indignei-me.
"Mas o darei mesmo assim."
"Não quero sua piedade."
"O mais correto seria eu querer a sua." - afirmou-me.
"Eu não acredito na sua existência!" - protestei.
"Isso me fascina e por isso faço questão da sua amizade."
"Não sou amigo de ninguém." - vociferei
"Serei seu último amigo, meu caro."
"Droga!" - bati a mão pesadamente sobre meu livro em cima da mesa - "Quem é você?" - interpelei.
"Sou o fim. Conhecem-me pela alcunha de Morte."
"Eu não acredito em você!"
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