Para saber o que aconteceu anteriormente leia esses outros contos na ordem apresentada:
0 (zero),
1 (um),
2 (dois),
3 (três)!
"Se você é a morte, então mate-me agora!" - desafiei-o.
Ele olhou-me sério, mais sério do que já havia me olhado antes. Encarei-o de volta, como não costumo fazer, mirando-lhe os olhos. Seu semblante mudou de sério para pensativo e eu aguardei. Esperei que falasse-me algo. O tempo passou. Depois de alguns longos minutos, enquanto eu bebericava meu café, ele finalmente me respondeu.
"Por que acha que eu posso simplesmente levá-lo agora, neste instante?"
"Não acho nada. Só quero que me prove que você é mesmo quem diz ser!"
"Não preciso que acredite em mim, mas ao longo de nossa conversa você terá certeza disso."
"Sabe o que eu penso?, penso que você é apenas fruto de minha imaginação. Penso que; eu vejo você, eu ouço você e posso até mesmo tocá-lo, mas a verdade é que você não está aí, e sim aqui, dentro da minha cabeça."
Ele riu de minhas palavras. Continuei mesmo assim.
"Eu sabia que um dia chegaria nesse ponto. Posso parecer louco e introspectivo, mas se tenho uma qualidade, essa é a de discernir a minha condição. Sei que não sou como as outras pessoas. Sei que as afasto. Sei que meu comportamento não é o esperado. Ele foi o único que me amou pelo que eu era. Por isso não tenho mais ninguém. Por isso não quero mais ninguém. Quero só as palavras comigo até o dia de minha morte e assim o farei. Pensei que morreria com a mente sã, mas vejo que ela falha-me agora."
Fatos:
- 1. O café estava frio, precisava pedir outro.
- 2. Tenho consciência da minha condição. Só não a controlo. Sou assim e pronto.
- 3. Tenho certeza, ele não existe.
Ele estudou-me, refletiu sobre minhas palavras. Ouviu-me com atenção sem interromper-me. Esperou-me calar e só depois de ouvir meus suspiros, piscou. Sorriu. Estalou a língua. Alongou o pescoço pendendo a cabeça de um lado para o outro. Moveu as sobrancelhas. Calou-se.
Olhei para a atendente que passava e perguntei:
"Está vendo esse homem sentado diante de mim?"
A mulher olhou para ele, fez uma careta e disse:
"Sim." - voltou-se para mim e perguntou - "Quer mais alguma coisa?"
"Traga-me um novo café, por favor."
O meu acompanhante esperou pacientemente que a mulher servisse meu café numa nova xícara. A mulher saiu sem lhe oferecer nada.
"Aí está a prova." - acusei-o.
"Que prova?"
"A de que você é fruto de minha imaginação."
"Qual prova?"
"Ela não ofereceu-lhe nada."
"Eu não quero nada."
"Você é uma imagem da minha mente."
"Sou?"
"Sim!"
"Quem trouxe-lhe os livros?"
Fatos:
- 1. Droga! Havia esquecido dos livros.
- 2. A mulher podia não ir com a cara dele.
- 3. Nada me convenceria de que ele existia e ponto.
"Isso não prova nada." - respondi chateado.
"Até quando vai querer brincar com isso? Não existe nada melhor para se conversar com a Morte do que esse joguinho de existe e não existe?"
Calei-me.
"Vamos, converse comigo." - insistiu.
"Não quero mais falar."
"Nem mesmo sobre ele?"
Fatos:
- 1. Golpe baixo usar nosso sentimento.
- 2. Olhei novamente para a sacola de livros. Estavam ali.
- 3. Tomávamos café todas as manhãs, enquanto líamos e meu companheiro sempre dizia-me...
"Não confie em quem não toma café!" - o homem sentado em frente completou meus pensamentos.
"Como sabe disso?" - indaguei nervoso.
"Sei de muitas coisas. Não tudo. Mas disso eu sei."
"Como sabia o que eu estava pensando?"
"Acho que adivinho essas coisas." - ironizou.
"Ah, você..."
"Af, 'você não existe', 'você não existe', pare com isso. Já está entediante." - disse ele interrompendo-me.
"Tudo bem." - respirei e refleti - "Ele está bem? Sente a minha falta?"
"Deve estar para ambas as perguntas."
"Você não sabe?"
"Não ocupo-me dos que já partiram, mas sim do que estão para partir."
"Então, por que levou-o de mim?"
"Não os escolho. Era a hora dele."
"E como foi?"
"Como de costume. Eu venho e os acompanho."
"Para onde?"
"Para longe daqui."
"Para o outro lado? Para..." - hesitei - "o paraíso?"
Ele riu alto novamente. Algumas pessoas olharam desconfiadas e incomodadas.
"De todas as pessoas, você é a que eu menos esperava esse tipo de pergunta. Fascinante!" - disse ainda sorrindo - "Por que a pergunta?, você não acredita em nada, muito menos num paraíso."
"Então existe o paraíso?"
"Eu sou somente a ponte entre dois lugares. Não vivo aqui e nem lá. Não sei para onde vão."
"Ridículo!"- irritei-me - "Você alega ser a morte e não sabe de nada importante!"
"Eu disse, eu sou o fim. Não sou um novo começo. Não sou o antes. Não sou o depois. Sou apenas o instante. Você é quem não está sendo coerente."
Fatos:
- 1. Eu estava perturbado.
- 2. O café não era-me mais palatável.
- 3. Tinha que terminar de ler o meu livro.
"Amanhã, no mesmo horário." - disse despedindo-se.
"Não!" - reclamei.
"Não vamos quebrar tanto sua rotina assim. Você precisa terminar o seu livro."
"Farei isso."
"Não compre mais nenhum. Você não terá tempo de lê-los. Estes serão os seus últimos." - disse apontando para os livros na sacola do meu lado.
Olhei para os livros e quando voltei-me para dizer mais alguma coisa ele já havia sumido. Previsível. Coisas de quem alega ser a morte e precisa provar sua existência.
Eu?, eu continuo duvidando.
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